Segundo o Atlas Irrigação da ANA, a atividade utiliza apenas 20% da área potencial existente no Brasil e pode chegar a 10,09 mi de hectares irrigados em 2030
Quando o tema é água, não há quem não tenha opinião formada sobre o assunto. Alguns alertam que “é preciso cuidar para não acabar”, outros, mais alarmistas, afirmam que “a água do mundo está acabando”, e há quem acredite que a água existe em abundância, mas é preciso garantir a gestão correta do uso, para que ela não falte para consumo humano – doméstico, indústrias, produção de energia, agricultura e pecuária. De uma coisa ninguém discorda, sem água não há vida, e é por isso que a Associação dos Irrigantes do Estado de Goiás (Irrigo) defende uma discussão mais ampla e participativa da sociedade sobre este assunto.
Em outubro de 2017, a Agência Nacional de Águas (ANA) divulgou um estudo intitulado Atlas Irrigação: uso da água na agricultura irrigada, que traçou um raio-X do setor no país. Os dados apontam que o Brasil está entre os dez países que mais irrigam no mundo, com uma área produtiva de 6,95 milhões de hectares (Mha) e um potencial de crescimento de 45% até 2030. Os líderes mundiais são a China e a Índia, com cerca de 70 Mha cada, seguidos dos Estados Unidos (26,7 Mha), do Paquistão (20,0 Mha) e do Irã (8,7 Mha). Com todo esse potencial de crescimento, a maior preocupação da ANA é que essa expansão ocorra de forma sustentável, atendendo aos critérios de responsabilidade ambiental dos órgãos reguladores ligados ao setor ambiental. “O potencial se baseia em indicativos que apontam disponibilidade hídrica para sustentar essa expansão e na capacidade de expansão em áreas já desmatadas que hoje são utilizadas para agricultura de sequeiro e pastagens”, afirma o especialista em recursos hídricos e coordenador executivo do Atlas Irrigação, Thiago Fontenelle.
Segundo Fontenelle, o irrigante está entre os agricultores mais qualificados do país. “Esses produtores rurais, além de fazer investimentos em tecnologia para irrigação, também implementam na propriedade manejo adequado de solo e água, essenciais para a produção sustentável”, explica. Ele observa que não se pode desconsiderar o fato de que a agricultura irrigada melhora as condições anteriores do solo, pois ela se instala em áreas ou de pastagens ou da produção agrícola em sequeiro. “Normalmente, quando o irrigante se instala, ele não leva só irrigação, mas também melhor manejo, melhores insumos, assistência técnica e extensão. É um pacote que traz manejo e produção do solo muito melhores, gerando muito mais riqueza”, argumenta Fontenelle.
Em contraponto, o setor de agricultura irrigada enfrenta alguns entraves legais para sua expansão no que se refere à documentação, às licenças, às outorgas e também à falta de organização dos irrigantes. Segundo Fontenelle, uma vez que os usuários estiverem ainda mais organizados, eles vão conseguir dos estados posições mais claras e rápidas. Ele aponta outro impasse: a falta de um plano estadual de irrigação. “Goiás é um dos estados com a maior área irrigada do país e ainda não tem um plano estadual de irrigação”. Como exemplo, cita o estado do Rio Grande do Sul (RS), que desenvolveu um plano e, junto a ele, foram desenvolvidas ações de desburocratização da irrigação, como: licenciamento ambiental mais agilizado para construção de barramentos para irrigação, políticas de crédito, entraves burocráticos, tudo associado ao processo de planejamento do Plano Estadual de Irrigação do RS. “Esses instrumentos, não só da política de recursos hídricos, mas da política de irrigação, são muito importantes para o desenvolvimento da irrigação em Goiás”, afirma.
Crise hídrica
Outro entrave enfrentado pelos agricultores é a crise hídrica vivenciada nos últimos anos. Em 2017, o problema agravou-se e os moradores dos centros urbanos ficaram dias e dias sem fornecimento de água, e na zona rural não foi diferente. Produtores rurais viram rios e barragens secando, e a preocupação tomou conta de todos, mas, segundo o especialista em recursos hídricos da ANA, não há motivo para alarde. “Ao se falar sobre crise hídrica é preciso compreender que existem ciclos hidrológicos. Hoje nós estamos enfrentando uma seca, daqui dois anos podemos estar enfrentando enchentes, e isso são variações normais”, explica Fontenelle. Segundo ele, o cálculo da capacidade de expansão de área irrigada do Atlas Irrigação foi realizado considerando um clima médio, de acordo com cada região, e, por isso, a seca vivenciada este ano é considerada apenas um ciclo, que não deve interferir no crescimento da irrigação no país nos próximos anos.
Fontenelle chama a atenção para o modelo pioneiro utilizado em Cristalina – os barramentos utilizados para armazenagem de água das chuvas. “Os barramentos são importantes não só para a irrigação, mas também para outros usos, como abastecimento humano, que só se viabiliza em algumas regiões porque é feita a reservação de água em períodos de chuva”, afirma. Segundo ele, esse modelo deve ser estimulado e otimizado. “A ANA, por exemplo, tem defendido o uso de barramentos coletivos, que podem dar maior garantia e mais segurança hídrica, e com menores impactos, ao invés de ter a construção de vários barramentos pequenos”, diz. Fontenelle aponta para iniciativas como a da Irrigo, na busca pela organização dos usuários, como uma forma de melhorar a gestão dos recursos hídricos. “Esse modelo de organização dos usuários da bacia, que tem acontecido em Cristalina, com muito ineditismo, precisa chegar a outras regiões. Desta forma, é possível cobrar dos órgãos ambientais que ajudem os irrigantes a pensar em soluções de forma coletiva, de modo que beneficie o maior número de agricultores, reduzindo o máximo possível os impactos”, pontua.
Existe hoje uma diferenciação de critérios para liberação de outorgas em cada órgão regulador. Em Goiás, por exemplo, os critérios utilizados para outorgas em rios federais, emitidas pela ANA, não são os mesmos utilizados pela Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos (Secima), e muitas vezes essa falta de harmonização cria impasses e dúvidas entre os produtores. Para Fontenelle, é muito importante que os critérios utilizados pelos órgãos reguladores estaduais estejam em harmonia com os critérios utilizados pela ANA. “A instância principal de discussão dessa harmonização dos critérios de outorga é exatamente o Plano de Recursos Hídricos. Quando foi executado o Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Paranaíba, uma das diretrizes que consta no plano é justamente essa compatibilização dos critérios de outorga, e é uma questão importante, só que cada Estado tem a sua jurisdição, e aí, mais uma vez, vem a importância da atuação do setor organizado, junto ao Comitê de Bacia, para que essas diretrizes elencadas no plano sejam realmente efetivadas”, pontua. Fontenelle destaca a atuação da Irrigo junto ao Comitê da Bacia do São Marcos. “Muitas vezes por situações específicas a outorga precisa ter critérios compatibilizados. Então, é necessária essa atuação junto ao Comitê de Bacias para que essas ações se desenvolvam mais; por exemplo, a questão de prioridade de uso na Bacia do Rio São Marcos para a irrigação, que foi obtida através da participação dos irrigantes junto ao Comitê”, afirma.
Recentemente, em uma entrevista, o ativista norte-americano Seth M. Siegel, autor do livro Faça-se a Água, afirmou que a solução para crise hídrica no Brasil é o aumento da cobrança pelo recurso. No papel, essa valoração econômica da água já existe há muito tempo e é um dos pilares da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instituída pela Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que ficou conhecida como “Lei das Águas”. Para Fontenelle, essa valoração econômica é importante para estimular o uso racional e as boas práticas. “Os mecanismos de cobrança da água ainda estão se desenvolvendo e são incipientes; em algumas bacias, já há cobrança, como na calha principal do São Francisco, em outras não, mas é importante que essa valorização econômica seja feita desde que cumpra a filosofia da PNRH, que é reverter os recursos para ações dentro da bacia”. Ele explica que o espírito da cobrança é justamente estimular o bom uso do recurso e o aumento da eficiência, bem como punir com tarifas maiores aquele usuário que faz o mau uso água. “Cobrar menos daquele produtor que faz uso do recurso de forma mais eficiente e punir quem tem muito desperdício, e utilizar o capital dessas cobranças no aprimoramento dos recursos hídricos na bacia, para que não seja só mais um custo para o produtor, mas um instrumento da PNRH que deve ser implementado da melhor forma, através dos Comitês de Bacias – que são as instâncias que aprovam as cobranças e os valores”, explica.
No Atlas Irrigação são apresentados indicadores de potencial de expansão total e efetivo, além de uma projeção para 2030 indicando quanto do potencial pode ser aproveitado.
Irrigação: vilã ou mocinha?
A agricultura irrigada é a grande aliada do desenvolvimento de uma produção mais sustentável, e, do ponto de vista ambiental, é muito mais interessante ter o desenvolvimento de uma agricultura mais tecnológica e estratégica, sendo uma alternativa para ter maior produção, sem que, para isso, precise haver mais desmatamentos, sem abrir novas fronteiras agrícolas, utilizando as mesmas áreas que já são hoje utilizadas pela agricultura.
Segundo informações da ANA, na maior parte das bacias irrigantes não existe conflito direto de uso humano e da agricultura, visto que as captações são feitas em regiões diferentes. “Na maior parte das regiões das bacias em que acompanhamos a irrigação, não há conflito com outros usos, porque não são instalados nos mesmos lugares, não utilizam os mesmos mananciais”, explica Fontenelle. Segundo o especialista, a própria legislação já define que, em situações de escassez, o abastecimento humano é prioritário; então, em bacias nas quais se tem situações de crise e em que há irrigante, geralmente esses são os primeiros usuários a terem que diminuir ou desligar suas captações para priorizar o abastecimento humano. “Não há grandes justificativas para que a irrigação seja culpada em situações de crise hídrica, seja porque ela não está competindo diretamente com o abastecimento, que é a maior parte dos casos, seja nas ocasiões em que existem pequenas irrigações, como há, por exemplo, nas bacias de contribuição a Brasília. Nesses casos, esses produtores têm que desligar ou diminuir suas irrigações, como foi feito no último ano. São dois aspectos que já dizem por si só que a irrigação não está tirando absolutamente grande parte da água das cidades, tampouco provocando a crise hídrica”, garante Fontenelle.
Irrigação em Goiás
Segundo o Atlas Irrigação, Goiás tem potencial para aumentar sua área irrigada, que hoje é de 717.484 hectares, para 1.193.102 hectares até 2030. Segundo o diretor técnico da Irrigo, Renato Caetano, para que Goiás alcance esse crescimentos, é essencial que o setor tenha capricho com a produção agrícola. “Para uma produção sustentável é preciso estar atento aos detalhes nas lavouras: manejo adequado de água e solo, monitoramento pluviométrico e construção de barragens para armazenamento da água das chuvas”, afirma.
Caetano destacou também o trabalho realizado pela Irrigo em defesa do irrigante, garantindo representação dos produtores rurais juntos aos órgãos públicos e realizando levantamento de informações para estudo da agricultura irrigada em Goiás. “Há muito o que se avançar, mas a Irrigo tem trabalhado incansavelmente para organização do setor agrícola de Goiás, para que, com dados em mãos, possamos traçar estratégias e ações para gestão dos recursos hídricos no estado”, conclui.