Lineu Rodrigues Neiva*
A água é elemento essencial para o desenvolvimento de qualquer atividade econômica. Atender de maneira satisfatória a todos os usos e usuários, seguindo os fundamentos da Lei n.° 9.433/1997, requer um intenso trabalho de planejamento e gestão.
Apesar de ser um recurso natural renovável, a água é limitada e a sua quantidade é variável de região para região. Esse fato, aliado ao aumento da demanda devido ao crescimento da economia e a melhoria da distribuição de renda da população, faz da gestão de recursos hídricos elemento estratégico para o desenvolvimento sustentável.
Embora o Brasil detenha cerca de 12% da água doce superficial disponível no planeta, 28% da disponibilidade nas Américas, e possua, ainda, em seu território, a maior parte do Aquífero Guarani, a principal reserva de água doce subterrânea da América do Sul, o país tem enfrentado problemas hídricos em várias regiões. Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) destaca o fato de a falta de água ter se tornado um fator limitante para o desenvolvimento econômico do Brasil e fonte de conflitos em várias regiões.
Não se pode pensar em agricultura e desenvolvimento sustentável sem que haja um equilíbrio entre a oferta e a demanda de água. O Brasil é um país de dimensões continentais com grandes diferenças sociais, ambientais e econômicas, o que deixa a atividade de gestão muito mais complexa. Fazer a gestão de forma igualitária em todo país pode levar a conflitos em bacias hidrográficas que já se encontram em estado crítico em termos de disponibilidade hídrica.
Atender as demandas atuais e futuras por alimento requererá um rápido aumento de produtividade, que precisa ser feito sem danos adicionais ao ambiente. Para que isso ocorra, é fundamental que os princípios de sustentabilidade sejam parte central das políticas agrícolas. Produzir de forma sustentável não é uma tarefa simples. É necessário reduzir o crescimento horizontal (aumento do uso dos recursos naturais), aumentar o crescimento vertical (aumentar a eficiência) e considerar o fato de que as tomadas de decisão estão cada vez mais complexas e que a agricultura está cada vez mais pressionada na direção da multifuncionalidade, principalmente, na produção de alimentos, fibras e energia.
Nesse contexto, será cada vez mais preponderante adotar estratégias de manejo, que considerem os recursos hídricos de forma integrada, e que almejem uma alocação equitativa, considerando os usos múltiplos da água e a bacia hidrográfica como unidade de referência. Essa abordagem integrada dos recursos hídricos demandará soluções científicas inovadoras que mudarão a forma de trabalhar a agricultura e de produzir alimentos.
Os problemas relacionados ao gerenciamento de água são de soluções complexas, multidisciplinares e multi-institucionais. Relatório da OCDE destaca que esses problemas são de importância para todos os setores, permeiam todos os agentes econômicos, combinam valores sociais e interesses privados com a formulação de políticas e a tomada de decisão, intrinsecamente ligadas a debates acalorados (OCDE, 2015). O desafio maior é planejar e alocar os recursos entre os diversos usuários, reduzindo os conflitos em um ambiente em que a oferta e a demanda são variáveis.
A irrigação, principal usuária de recursos hídricos, apresenta características de uso bastante diferente das demais categorias de usuários, uma vez que a quantidade de água que ela demanda é bastante variável de ano para ano. Isso dificulta a gestão e deixa o irrigante com a impressão de que a alocação de água não está sendo feita de forma adequada. Essa falsa impressão ocorre pelo fato de as outorgas serem fixas e a demanda ser variável, fazendo com que, nos anos de baixa demanda, haja água em excesso nos rios, trazendo ao irrigante a percepção de que ele poderia ter mais água para sua irrigação.
Produzir alimento demanda quantidades significativas de água. Resultados referentes a 30 anos de simulação (1980 a 2011) da demanda de irrigação para a cultura do milho, com duração de 140 dias, plantado no dia 10 de janeiro, na região do Planalto Central, indicam uma demanda da ordem de 546 mm. Essa demanda em uma área de 100 ha representaria 546 mil metros cúbicos de água. Entretanto, apenas uma parte dessa água é retirada dos rios. Cerca de 41% das necessidades hídricas da cultura é suprida pela chuva (média de 30 anos). Ou seja, 223.860 m3 da água necessária vêm da precipitação e 322.140 m3 são retiradas dos rios ou aquíferos pela irrigação.
Esse estudo indicou que a demanda da cultura foi pouco variável, mas que as necessidades de irrigação variaram muito de ano para ano, representando de 29% a 81% da demanda hídrica necessária. Isso ocorre em razão da grande variabilidade da chuva e também do momento em que ela ocorre. Essa variação observada na necessidade de irrigação de ano para ano é um complicador para a outorga, fazendo-se necessárias estratégias de gestão específicas para a agricultura irrigada. Essa constatação é ainda mais importante nas bacias hidrográficas críticas, onde é interessante considerar a alocação negociada como uma importante estratégia para o desenvolvimento sustentável dessas regiões.
Retiradas de água dos mananciais, necessárias para garantir a prática da agricultura, devem estar previstas nos planejamentos estratégicos, especialmente em cronogramas existentes nos planos de recursos hídricos, conforme as condições climáticas, a vocação dos cultivos regionais, as potencialidades das áreas produtivas e os mercados consumidores e, posteriormente, consolidadas por meio da definição de planos de concessão de outorga de uso, possibilitando que seja feita uma gestão compartilhada em cooperação e a prevenção com redução dos conflitos.
É importante que os agricultores estejam atentos aos avanços tecnológicos, uma vez que as novas tecnologias podem contribuir para melhorar a eficiência do sistema, facilitar o manejo e beneficiar o ambiente.
A gestão deve considerar as desigualdades hídricas regionais e ter um olhar diferenciado para as bacias hidrográficas críticas, nas quais a disponibilidade hídrica já está comprometida, assim como em locais onde já é realidade a ocorrência de conflitos pelo uso da água. O relatório de conjuntura da Agência Nacional de Águas (ANA) indicou que, dos 104.791 km de rios federais no Brasil, 16.427 km (16%) encontram-se em estado considerado crítico em relação ao balanço quali-quantitativo. É importante incorporar uma visão sistêmica do sistema hídrico, em que o curso d’água, em sua qualidade e quantidade, é reflexo das atividades que ocorrem na bacia como um todo, assim como considerar os usos múltiplos, uma vez que no Brasil são diversificados.
O desenvolvimento de uma agricultura sustentável passa, necessariamente, pelo uso sustentável dos recursos hídricos, que, por sua vez, depende de uma gestão que incorpore os usos múltiplos da água e considere os fundamentos e diretrizes da Política Nacional de Recursos Hídricos. É importante fortalecer os mecanismos que contribuem para aumentar a oferta hídrica na bacia hidrográfica. Dentre esses, os sistemas de conservação de solo, que estão em constante adaptação e evolução, são os que apresentam o maior potencial de contribuir para os recursos hídricos em termos de sua qualidade e quantidade, destacando os mecanismos destinados ao controle da erosão, dessalinização, redução da evaporação e aumento da infiltração e da capacidade de retenção da água no solo.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), entre 2001 e 2025, cerca de 80% da produção adicional de alimento, necessária para atender as demandas, serão provenientes de áreas irrigadas, que é a principal usuária dos recursos hídricos. Dessa forma, é importante fortalecer a gestão da demanda. Ou seja, melhorar a eficiência de uso da água na irrigação, reduzir perdas na condução, melhorar o manejo do sistema e a eficiência de uso, desenvolver técnicas de gerenciamento da demanda e desenvolver culturas mais resistentes ao estresse hídrico.
As águas residuárias têm grande potencial de uso e poderão se tornar uma importante ferramenta para o gerenciamento de recursos hídricos e de políticas ambientais no Brasil. Outro fator importante que deve ser considerado na gestão é que a maior parte dos recursos hídricos ainda continua sendo manejada de maneira fragmentada, desconsiderando relações importantes, como, por exemplo, aquela existente entre as águas subterrânea e superficial. É crucial que a gestão considere a dinâmica das águas subterrâneas e sua interação, nos diferentes ambientes, com a água superficial.
Os processos de tomada de decisão estão cada vez mais complexos, com necessidade de decisões mais rápidas, além de depender de análises de quantidade de dados cada vez maiores. Esses fatores aumentam o risco de tomadas de decisão equivocadas. Torna-se, portanto, importante que a gestão utilize de forma efetiva as tecnologias de informação, de comunicação, de Big Data e de modelos de inteligência computacional e simulação.
A gestão de recursos hídricos terá que se fundamentar, cada vez mais, em uma abordagem multidisciplinar, considerando, de maneira integrada, as visões dos diferentes setores usuários. Deverá considerar em seus cenários os fatores inerentes à agricultura moderna, que poderão intensificar e ampliar as dificuldades de gestão, como, por exemplo, as mudanças climáticas.
Garantir água para os diferentes usos, incluindo a irrigação, com um adequado nível de confiabilidade, é um dos pilares para o desenvolvimento sustentável de qualquer região. Alocar água entre os diferentes usuários, considerando as suas especificidades, é o papel principal da gestão de água.
O sucesso da gestão de água na agricultura dependerá primordialmente de dois fatores: (i) das tecnologias disponíveis e dos novos avanços científicos necessários para manejar o aumento da escassez hídrica e outros problemas emergentes, cujo desenvolvimento dependerá fortemente da constituição de bases de conhecimentos já consolidados; (ii) da integração efetiva das políticas setoriais e dos seus respectivos planos, que apresentam como uma de suas funções primordiais orientar as diretrizes para o compartilhamento de recursos hídricos entre os diferentes usuários de água.
*Lineu Neiva Rodrigues é doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa e pós-doutor pela Universidade de Nebraska-EUA, Lincoln, em engenharia de irrigação e manejo de água. Foi consultor da Organização dos Estados Americanos (OEA) e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia-EUA, Davis, no departamento de estudos de terra, ar e recursos hídricos, onde desenvolveu trabalho em modelagem da hidrologia de área irrigadas. Foi membro titular da Câmara Técnica de Análise de Projetos e representante do Brasil na Plataforma de Recursos Hídricos e Tecnologia de Irrigação do Programa de Cooperação para o Desenvolvimento Tecnológico Agroalimentar e Agroindustrial do Cone Sul (PROCISUR). Atualmente é pesquisador na área de recursos hídricos e irrigação e supervisor do Núcleo de Articulação Internacional da Embrapa Cerrados. É professor do programa de pós-graduação do Departamento de Engenharia Agrícola da Universidade Federal de Viçosa e da Faculdade de Ciências Agronômicas da UNESP/Botucatu. É diretor de políticas públicas da Associação Brasileira de Engenharia Agrícola, membro do Comitê gestor do Portfólio de Projetos em Mudanças Climáticas de agricultura irrigada da Embrapa. É conselheiro titular do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e presidente da Câmara Técnica de Ciência e Tecnologia. Atua como consultor científico de diversos órgãos de fomento à pesquisa e revistas científicas e coordena o grupo de pesquisa do CNPq intitulado Rede Agrohidro. Tem experiência na área de Engenharia Agrícola, com ênfase em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos e Irrigação, atuando principalmente nos seguintes temas: gestão de recursos hídricos, modelagem hidrológica, escoamento superficial e manejo de irrigação.
Fonte: Embrapa Cerrados